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"Registros Gerais"

De 19 de março a 19 de maio 2021

IDENTIDADES EM REGISTROS

 

 

O Registro Geral é um documento de identificação civil no Brasil, composto por nome, data de nascimento, filiação, foto, impressão digital e pequenos dados que identificam seu titular. Pequenos dados necessários para haver o uso em todo território nacional. A questão é se as informações presentes neste documento de fato nos identificam? Ou nos identificamos com elas?

 

Ao olhar nossos registros gerais, talvez estes estejam representando visualmente e textualmente realidades que por vezes nos conectam, quando identificamos uma certa satisfação pela nossa imagem e pelos nomes e sobrenomes que carregam as histórias de nossas famílias. Em outros casos, ao olhar para estes sobrenomes/nomes e para estas imagens, a realidade pode representar uma ausência, uma discordância, um não desejo de estar ali sendo identicadx daquela forma. Até “rasgar” o que representa a não aceitação deste documento, continuamente realizamos cópias para nos apresentar em qualquer ação de inserção social no sistema.

 

O Registro geral é um documento criado pelas instituições a nossa revelia, com nomes e gêneros que a nós são postos desde nossa certidão de nascimento. Representam números que nos identificam perante o Estado. Números! Em um caso especifico registrado pela fotógrafa Claudia Andujar na série “Marcados” (1981/1983) os índios Yanomamins, por não terem uma identificação nominal, foram catalogados através de números pendurados em seus pescoços para identifica-los durante uma campanha de vacinação, devido ao alto contágio de doenças provindas pelo contato dos brancos. A partir dos registros, os indígenas estavam prestes a se tornar informação, um número, que permitia serem cadastrados em algum tipo de circuito administrativo.

Para ser algo além de um número, é necessário buscar de fato um sentido para o Registro Geral. Neste contexto Registros Gerais, de Rafael Matheus Moreira, nos possibilita este encontro, ao permitir o contato com narrativas e pinturas de mulheres trans e travestidas que a muito tempo foram e continuam sendo representadas por números em cadastros gerais de vida ou de morte. No entanto, carregam identidades e valores que falam muito mais do que está posto em documentos e registros.

Rafael nos aproxima da visibilidade de rostos e falas, socialmente e historicamente apagadas, traz a tona a possibilidade de reconhecermos dentro de sua experiência artística o contato com estas identidades e suas falas, construindo uma contribuição social do reconhecimento e respeito destas e de outras histórias invisibilizadas. A artista traz uma colaboração significativa para o campo da imagem nas artes visuais, contrapondo as identidades hegemônicas e dominantes no ensino das artes, na história da arte, na arte contemporânea e no sistema das artes do Brasil.

 

Através do contato com essas corpas trans/travestidas, em seu processo de criação, Rafael escutou parte de suas histórias. Histórias pessoais em diálogos coletivos de sete vidas que em suas experiências se tocam, incluindo a de Rafael. Mulheres que em suas narrativas, resistem a um sistema machista e patriarcal, um sistema que continuamente tende a construir aparências em regras estabelecidas pelo silêncio, como se neste silêncio não houvesse também rupturas. Um sistema que somente 2018[1] anos depois tornou possível a mudança de nomes de corpxs trans, na então carteira de identidade, sem um processo cirúrgico, mesmo ainda exigindo um alto custo financeiro para dar entrada.

 

Em Registros Gerais Rafael nos coloca diante de proposições incisivas que surgem fora das instituições, são produzidas, precisamente, por pessoas à margem do sistema neoliberal e sexual, que a pesar das violências sofridas, dos preconceitos e rejeições, se conectam a um contexto afetivo, político e autônomo. Mulheres que em suas experiências nos trazem em seus universos de perdas e conquistas, a construção de sua representatividade e de um discurso político, que nos fazem refletir sobre o que seria a representação destas corpas “endemonizadas” pela sociedade. Desde 2017 Rafael tem realizado pesquisas que apontam sua produção visual no envolvimento com a personificação e presentificação destas vidas. Em Registros Gerais, as vozes e rostos pintados nas transparências dos vidros, ora refletem a sensibilidade do humano e sua fragilidade, e ora trazem através de narrativas e olhares, posturas que atravessam e reverberam dentro de nós.

 

 

Heldilene Reale

Curadora Processual

 

[1] Em março de 2018, o Supremo Tribunal Federal, em uma votação histórica, reconheceu a importância de retirar a obrigatoriedade da cirurgia e a solicitação judicial para retificação do nome. Agora, basta ir até o cartório, se autoidentificar uma pessoa trans e alterar o nome e o gênero. Em 29 de junho do mesmo ano, o Conselho Nacional de Justiça publicou o Provimento nº 73/201814, que regulamentou a retificação do registro civil e todos os Cartórios de Registro de Pessoas do Brasil ficaram obrigados a realizar a alteração de nome e marcador de gênero nas certidões de nascimento.

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