Brincadeira na Margem
Veronica Limma
Quando nós, mulheres negras, experimentamos a força transformadora do amor em nossas vidas, assumimos atitudes capazes de alterar completamente as estruturas sociais existentes. Assim poderemos acumular forças para enfrentar o genocídio que mata diariamente tantos homens, mulheres e crianças negras. Quando conhecemos o amor, quando amamos, é possível enxergar o passado com outros olhos; é possível transformar o presente e sonhar o futuro. Esse é o poder do amor. O amor cura.
bell hooks
>>Aqui escrevo como tua parceira de trabalho há muito tempo; como tua amiga e admiradora. <<
Fiquei pensando dias, em como escrever essa curadoria sabe? Fazer um texto citando movimentos artísticos e artistas vanguardistas, poéticas deleuzianas...sei lá. Porém, nada disso pode descrever o teu processo e a tua trajetória, e esse também nem sinto que seja meu papel, que vai muito além de ser curadora desse processo.
Eu sei que... sei bem pouco das coisas, mas, da parte que eu compreendo, é que tu descobristes umas, e inventastes outras formas de trabalhar com essa técnica que tu te apaixonaste desde que teve oportunidade de conhecer e aprender no Curro Velho, há muito tempo atrás. És uma gravurista desde então, te encontrou nessa linguagem e te encanta pelas possibilidades. A tua pesquisa artística com resíduos de pvc como suporte de gravação das matrizes, que desemboca nessa exposição, traz um pedaço muito especial da tua trajetória de vida e teus amores.
Desenvolvestes uma tecnologia altamente sofisticada nos processos técnicos em gravura e tão bem pontuados e executados , que vejo que são próprios de uma boa capricorniana ( rs, não que isso te defina) , e que também são partes dessas tuas andanças na cidade de bike, indo e vindo do trampo e das correrias da vida, dos teus momentos depois de uma semana puxada de trampo cumprindo horário comercial e, ainda assim se encantando em ver e brincar com teus sobrinhos, ter olhos pra enxergar potência gráfica numa leitura tão íntima dessa relação de vocês.
Nessa paisagem que tu cresceste, lá na Marambaia no canal do Água cristal, das tuas experiencias à margem, tua vivência lúdica. Palavras que nem eu, nem ninguém tem o poder de explicar sobre teu processo artístico. Esse texto ensaia uma pontuação importante pra nossa autoafirmação enquanto artistas periféricas, mas, é sobre sobrevivência e amor. As gravuras falam de ti e dos teus, é tudo sobre amor. Amor à arte, a gravura, as crianças com quem convives. Tua Arte é também e principalmente sobre isso.
Te ouço falar desse amor, desse dia a dia com teus sobrinhos há muito tempo, na tua trajetória artística e vida principalmente, se manifestam em um cuidado, atenção e foco de quem tem os pés bem no chão, que tem consciência e responsabilidade com os seus, seu lugar, sua história.
Brincadeira na Margem é uma culminância de amadurecimentos poéticos e estéticos de uma artista preta, que na periferia vive e daqui traz suas memórias e imagens sobre a sua relação com seus sobrinhos durante o confinamento numa pandemia aterrorizadora. É sobre a esperança pra gente que é adulto. De ver na forma que elas enxergam a beleza e a simplicidade em coisas e objetos comuns, de como se movimentam numa paisagem precária socialmente com um saneamento que quase é inexistente; e lá brincam, inventam e inspiram a sua própria força e esperança.
Sem aqui autorizar ou romantizar essa condição que nós da periferia somos expostos, e sim de poder perceber que tem potência, tem vida, tem amor, tem tudo o que pudemos construir apesar, de um projeto governamental genocida. Ainda assim, a gente respira, produz e sonha_ “Eles combinaram de nos matar, mas nós combinamos de não morrer” - Conceição Evaristo. E esse não morrer é em várias nuances da nossa vida, de não matar nossa esperança, alegria e vontade de continuar a viver, mesmo com todas as dificuldades e impossibilidades. E a Arte da Vel, essa mulher que traz um respiro pra esse período tão mais difícil que tamo passando, é inspirador. É uma forma de se resistir onde não nos querem.
Verônica reinventa e redimensiona a palavra “precária” que pra mim, de uma forma altamente refinada. Ela reinventa e nos emociona com uma narrativa lúdica e totalmente particular, no entanto, totalmente coletiva pra uma minoria que é maioria na cidade de Belém, em obras em preto e branco em um corte firme, ela mostra pra gente esse lugar.
Sacolas, chinelos, pvc, madeira.... são elementos que fazem parte do nosso dia dia, e as crianças com quem ela convive assim, como ela ressignificam esse universo, e que ela lança pra gente com sua maestria nesse rolê da gravura. Salve mana! Axé tem e ainda vai ter muito mais, esse é só o começo de mais uma parte.
Débora Oliveira, vulgo mamacyta