"ás vezes, me olha com olhos humanamente compreensivos"
De 09 de novembro a 25 de dezembro 2021
O que conecta os processos criativos dessas duas jovens artistas belenenses na casa dos vinte anos não poderia ser nada mais fora da curva na era das redes sociais e da internet: literatura. Oscar Wilde, escritor irlandês de fins do Séc.XIX, e Franz Kafka, escritor tcheco do inicio do Séc. XX, com os contos "0 Rouxinol e a Rosa" e "Um Cruzamento", respectivamente, funcionaram como vetores fecundantes de ideias visuais potentes, reunidas pela primeira vez nessa mostra contemplada pelo edital Chama, da Galeria Candeeiro.
Em ambos os contos, vemos animais protagonizando dramas existenciais e crises identitárias, tendo como pano de fundo uma atmosfera onírica, quase de conto de fadas. Acontece que tanto Wilde quanto Kafka, hábeis construtores de narrativas que se tornaram epitomes de seus estilos únicos , baseados na critica sagaz ao modo de vida vitoriano (Wilde), e no desnudamento da violência surreal das estruturas de poder e dominação do Estado (Kafka), acabam por referendar, num salto de mais de um século, a busca estética de Dóris Rocha em sua pesquisa intitulada "Autorretractus", cujas obras denotam uma investigação minuciosa de si mesma, através de técnicas as mais diversas: colagem, objeto, instalação, vídeo; e de Lais Cabral, seus desdobramentos experimentais na pintura em acrílica, na série "Nascer de Meus Pássaros", onde vemos vestígios de sua experiência cenográfica em obras que combinam técnicas e materiais diversos como papietagem, papelão, madeira, assemblagem, objeto. 0 jogo de olhares proposto pelas artistas atravessa terrenos diversos: desnudamentos, paisagens mentais e sentimentais intimas, dor, paixão, autoaceitação, inadequação, identidade, anonimato e anomalia.
Toda estranheza que a arte contemporânea poderia prover ao espectador, desafiando-o, aqui encontra uma superfície especular, reflexiva e contemplativa, que diante da vida, da morte e da incontornável necessidade da criação, nos olha nos olhos, sem expectativas. Suas obras representam suas visões sobre essas matérias voláteis e vibráteis - e elas próprias nos observam. Nós, que décadas fruímos com a disposição possível, podemos talvez compreendê-las. Talvez.
Renato Torres
Curador